sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

da série: quando Caio - impressão

Rio, Out 2013


14:16 - abro o livro e na página, acima do título, há uma marca de dedo. uma impressão digital assim meio borrada. fico matutando sobre o que era aquilo. o cara da gráfica, dedos sujos de tinta, teria aberto o livro na página do Holocausto e depois de ler sobre o dente quebrado e dolorido, parou, talvez achando que aquilo não faria o relógio andar mais rápido, como aconteceu das outras vezes em que pegara um livro com dedos sujos de tinta pra ler uma página só, que fosse. aquilo não lhe traria um sorriso enviesado e um tremor no pau, como da outra vez em que a página aberta ao acaso contava da mulher bonita, trêmula, de pernas abertas, enquanto um cara entrava nela devagar, depois mais forte, e saía, e entrava de novo, e o corpo dela tremia e – o supervisor passou e ele teve que disfarçar e colocar o livro na caixa. aquilo não traria alegria ou esperança para sua vida eternamente manchada de tinta, barulhenta do roçar de engrenagens, ofuscada pelas intermináveis fileiras de lâmpadas fluorescentes com sua luz dura e fria que apagava o dia quadrado e pálido, mal percebido através dos basculantes altíssimos. não traria o aroma imaginado de um campo de lavanda brilhando ao sol momentaneamente mais forte que o cheiro de tinta, graxa, cola e papel novo. mas a impressão de seu polegar teria ficado, marcado naquele único exemplar daquela tiragem específica, até chegar à minhas mãos e me surpreender, sentada no banco de mármore preto do lado de fora do prédio, onde todos podem fumar, aquele gueto corporativo, último baluarte do sedentarismo, onde os revoltados, os que não se inscreveram no programa saúde, os mais antigos que se recusam a ter uma vida mais saudável, os que não se encaixam na geração politicamente correta, podem se suicidar lentamente sem atrapalhar ninguém. sigo a mancha de tinta, ela se estende pela borda superior do livro e agora duvido que não seja apenas uma sujeira prosaica. 14:22. ainda há tempo. outro cigarro. confirmo o que o cara com dedos sujos de tinta pode ter pensado, aquilo não me trouxe alegria. mas a taquicardia começou a recompor o que eu imaginava perdido, esvaído sutilmente durante o sono calorento, exaustivo, daqueles que a gente se arrepende de ter dormido. 14:30. entrar já. paro no trecho do cara que ia fugir com o circo, só que não. ando até a catraca que, surpreendentemente, ainda marca 14:30, tempo relativo, elastecido, espaço infinito entre os minutos. flutuo até o elevador, através do corredor, passo, ocultando um sorriso, entre os bebedores de café que falam sobre futebol e, estranhamente, sobre o sentido da vida. o chá quase queima as pontas dos dedos através do copo de plástico sem qualquer noção de sustentabilidade e por um segundo desejo que não haja objetos flutuantes não identificados boiando nele, só hoje. sento-me e escrevo, pra não perder nada. 

da série: quando Caio - mas então eu pensava sobre quando conheci o Caio

Rio, Out 2013

mas então eu pensava sobre quando conheci o Caio, enquanto eu andava até a farmácia. foi praticamente ontem, levando em consideração essa minha vida nova, tão recente, em que o tempo passa diferente, conta diferente. ontem, praticamente. o ônibus ía sair e eu ali sentada naquele sofá escutando tua voz urgente, entrecortada. e me espantei quando o olho encheu d’água, feito enchente, que a gente não adivinha, nem controla, apenas sente. e o que senti foi que reconheci o que nunca tinha ouvido. e de repente não sabia se só ouvia ou se respondia, tô escutando, tô prestando atenção, fala logo, e de repente não sabia se só ouvia ou se era eu que dizia, se eram as palavras dele pra mim ou minhas palavras através dele, porque era tudo o que eu queria te dizer, não pra ti, exatamente, entendes? mas pra alguém que fosse que quisesse muito ouvir o que não fora dito e ainda esperava enquanto o tempo se esgotava. não falei nada. mas isso foi ontem. lembras? mas não importa. hoje na farmácia eu quase comprei um esmalte laranja, mas eu sei que nunca usaria esmalte laranja. e percebi como tudo parecia maior. o tapume escostado na parede da estação do metrô, será que alguém dorme ali? e parecia que eu flutuava pelas escadas do metrô e sorria estranhamente. e corri pra entrar no vagão verde por dentro, que não gosto do que tem cor de caramelo. vagão verde que eu pensei da outra vez parecia hospital, mas que hoje percebi que estava todo descascado, acho que eles vão pintar. então entendi que o motivo de flutuar e rir estranhamente é que havia uma bolha em volta de mim, uma bolha de Caio. e dentro de mim tudo o que eu via se descrevia, as palavras jorravam feito torrente e, sem ter por onde sair, acumulavam-se num bolo na garganta e eu já não sabia se chorava, se falava, se gritava. não fiz nada. sabia que chegaria em casa logo, ou daqui a muitos anos, e escreveria o que via desse jeito imenso, intenso, “caiótico”, e depois te contaria tudo, vê e diz o que achas. a simples noção de que tu poderias entender. e quanto mais o bolo crescia e me preenchia por dentro, mais eu sabia que não seria plágio. entendes? não é que eu planejasse, ou pensasse, ou copiasse. não passava pela cabeça. só jorrava, essa coisa descritiva, imensa, urgente. esperava que as caras de paisagem não me notassem. rezava que elas não percebessem meus olhos tão abertos, tão atentos ao tênis de couro preto do cara sentado no banco verde da frente, eu sentada no banco laranja, de lado, que nunca me sento de costas que fico enjoada. percebi que sentara no banco laranja e logo esperei que não me julgassem, o vagão quase vazio, sem passageiros preferenciais. esperava que achassem que eu era uma passageira preferencial, velha, cansada, os olhos um tanto esbugalhados, talvez, enquanto olhava o tênis de couro preto do cara que tinha um cadarço estranho, dum tipo que nunca tinha visto. e sorri. pois nem via passarem as estações. e logo cheguei e saí logo do vagão verde de hospital, rezando que não percebessem que eu não tinha mais cara de paisagem como todo mundo. eu sei, isso é muito perigoso. poderiam querer quebrar-me os dentes se percebessem que eu acabara de renascer, de novo. que estava assim tão vulnerável, com menos de um dia de vida. vazia, plena, flutuando na bolha de Caio. poderiam querer matar esta eu neonata. sei lá, porque, só tive medo. e pedi num sussurro, por favor, hoje não. por favor, hoje não. agora que cheguei e escrevi tudo alegro-me que me lembrei de tudo, do jorro descritivo incontrolável. e espero que entendas.

da série: quando Caio

Rio, Out 2013

hoje não almoço. como pipoca com guaraná (“quero doces”...). vou em busca de Caio, fugindo das goteiras de ar condicionado e do bafo do metrô – aquela serpente barulhenta e sufocante, aquele monstro que diariamente me engole e me cospe. enfim, a casa da Alice, com seu tapete de losangos distorcidos e suas curvas repletas de livros. quase nada de Caio. mesmo assim, pego, abro, caio; na verdade, mergulho. num, encontro o texto mais amado, só por ele já vale levar. leio em silêncio, escutando não a minha, mas outra voz, a que me desvirginou de Caio sem eu saber, e já desvendou o trecho tantas vezes que já me “lavrou com ele a alma”, e me aperta o peito e me transborda os olhos, toda vez, como se fosse aquela primeira, de dor e de gozo. noutro, busco, folheio, estranho. porque me busco. algum que não só me toque, mas me invada, a ponto de fazer-se meu, ou eu, dele; a ponto de arrancar do torpor esta carne envenenada, dopada, trôpega, que habito. vou e volto, viro as páginas, reviro, bebendo sôfrega, sem calma, sem método. todos os textos, e nenhum, me prendem por tempo suficiente para pensar. mas nem quero mesmo pensar. descubro o coração aos pulos, ofegante. como que sozinha na casa da Alice, caio no poço sem fundo, me jogo. ali ficaria para sempre. mas logo bebo do elixir das coisas ordinárias que me trazem de volta à curva dos losangos retorcidos. CPF. digite sua senha. o ar abafado de fora me agarra e parece fechar a porta atrás de mim. nem me viro para olhar. sei que acabou. volto. pelo meio da rua, onde não há goteiras de ar condicionado. o bafo do metrô quase lança os Caios no meio do trânsito. o suor no pescoço começa a encharcar a echarpe. será que é hoje que eu caio? de novo? inspiro o peido dos automóveis e das gentes. fujo das pombas kamikazes e suas pestilências. expiro minha própria fumaça com hálito de fome. mas, pelo menos tenho Caio. então, hoje não caio, não.

da série: quando Caio - Caio e Clarice

Clarice é seca. assim pensei. quem poderia me culpar? eu vinha encharcada, bêbada de Caio.

sim, sabia que no mar de Caio havia águas de Clarice, ele que também sorvera as águas dela, sôfrego. imenso, Caio também se encharcara das águas de Clarice. não é nada demais, todos sabem disso. mas achei, Clarice é seca, Caio é um mar imenso. acho que não gosto de Clarice. Sveglia demais. 

todavia, isso foi só no início. no início do início. no meio do início, não sei se eu é que fui secando, ou Clarice que foi umedecendo. mas isso não é importante. o importante é que. no fim do fim, no caso. quero dizer que, no fim do fim, gosto muito de Clarice. e amo Caio. ainda que nenhum dos dois dê a menor importância para isso.

mas tergiverso. no caso, quero dizer que agora, entre o fim do início e o início de um outro que não sei, percebo que são muitas e diversas e belas as águas de Clarice.      

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

linhas azuis

Rio, Jul 2006

“eu sou um rio.”
entre a vigília e o sonho
vieram as palavras
e há muito não vinham assim
sem o filtro.
“eu sou o leito por onde corre...”
vou lembrar amanhã
mas tantas vezes esqueci
que por medo levantei.
era espantoso demais
para ignorar.
nua, no escuro
escrevi nas linhas azuis
mais sobre as palavras
do que elas mesmas.
perdi-as de todo jeito.
“eu sou o rio
eu sou o leito
a fonte jorra
das profundezas
de mim mesma
afinal.”