Rio,
Out 2013
14:16
- abro o livro e na página, acima do título, há uma marca de dedo. uma
impressão digital assim meio borrada. fico matutando sobre o que era aquilo. o
cara da gráfica, dedos sujos de tinta, teria aberto o livro na página do
Holocausto e depois de ler sobre o dente quebrado e dolorido, parou, talvez
achando que aquilo não faria o relógio andar mais rápido, como aconteceu das
outras vezes em que pegara um livro com dedos sujos de tinta pra ler uma página
só, que fosse. aquilo não lhe traria um sorriso enviesado e um tremor no pau,
como da outra vez em que a página aberta ao acaso contava da mulher bonita,
trêmula, de pernas abertas, enquanto um cara entrava nela devagar, depois mais
forte, e saía, e entrava de novo, e o corpo dela tremia e – o supervisor passou
e ele teve que disfarçar e colocar o livro na caixa. aquilo não traria alegria
ou esperança para sua vida eternamente manchada de tinta, barulhenta do roçar
de engrenagens, ofuscada pelas intermináveis fileiras de lâmpadas fluorescentes
com sua luz dura e fria que apagava o dia quadrado e pálido, mal percebido
através dos basculantes altíssimos. não traria o aroma imaginado de um campo de
lavanda brilhando ao sol momentaneamente mais forte que o cheiro de tinta, graxa,
cola e papel novo. mas a impressão de seu polegar teria ficado, marcado naquele
único exemplar daquela tiragem específica, até chegar à minhas mãos e me
surpreender, sentada no banco de mármore preto do lado de fora do prédio, onde
todos podem fumar, aquele gueto corporativo, último baluarte do sedentarismo,
onde os revoltados, os que não se inscreveram no programa saúde, os mais
antigos que se recusam a ter uma vida mais saudável, os que não se encaixam na
geração politicamente correta, podem se suicidar lentamente sem atrapalhar
ninguém. sigo a mancha de tinta, ela se estende pela borda superior do livro e
agora duvido que não seja apenas uma sujeira prosaica. 14:22. ainda há tempo.
outro cigarro. confirmo o que o cara com dedos sujos de tinta pode ter pensado,
aquilo não me trouxe alegria. mas a taquicardia começou a recompor o que eu
imaginava perdido, esvaído sutilmente durante o sono calorento, exaustivo,
daqueles que a gente se arrepende de ter dormido. 14:30. entrar já. paro no
trecho do cara que ia fugir com o circo, só que não. ando até a catraca que,
surpreendentemente, ainda marca 14:30, tempo relativo, elastecido, espaço
infinito entre os minutos. flutuo até o elevador, através do corredor, passo,
ocultando um sorriso, entre os bebedores de café que falam sobre futebol e,
estranhamente, sobre o sentido da vida. o chá quase queima as pontas dos dedos
através do copo de plástico sem qualquer noção de sustentabilidade e por um
segundo desejo que não haja objetos flutuantes não identificados boiando nele,
só hoje. sento-me e escrevo, pra não perder nada.