mas então eu pensava sobre quando
conheci o Caio, enquanto eu andava até a farmácia. foi praticamente ontem,
levando em consideração essa minha vida nova, tão recente, em que o tempo passa
diferente, conta diferente. ontem, praticamente. o ônibus ía sair e eu ali
sentada naquele sofá escutando tua voz urgente, entrecortada. e me espantei
quando o olho encheu d’água, feito enchente, que a gente não adivinha, nem
controla, apenas sente. e o que senti foi que reconheci o que nunca tinha
ouvido. e de repente não sabia se só ouvia ou se respondia, tô escutando, tô
prestando atenção, fala logo, e de repente não sabia se só ouvia ou se era eu
que dizia, se eram as palavras dele pra mim ou minhas palavras através dele,
porque era tudo o que eu queria te dizer, não pra ti, exatamente, entendes? mas
pra alguém que fosse que quisesse muito ouvir o que não fora dito e ainda
esperava enquanto o tempo se esgotava. não falei nada. mas isso foi ontem.
lembras? mas não importa. hoje na farmácia eu quase comprei um esmalte laranja,
mas eu sei que nunca usaria esmalte laranja. e percebi como tudo parecia maior.
o tapume escostado na parede da estação do metrô, será que alguém dorme ali? e
parecia que eu flutuava pelas escadas do metrô e sorria estranhamente. e corri
pra entrar no vagão verde por dentro, que não gosto do que tem cor de caramelo.
vagão verde que eu pensei da outra vez parecia hospital, mas que hoje percebi
que estava todo descascado, acho que eles vão pintar. então entendi que o
motivo de flutuar e rir estranhamente é que havia uma bolha em volta de mim,
uma bolha de Caio. e dentro de mim tudo o que eu via se descrevia, as palavras
jorravam feito torrente e, sem ter por onde sair, acumulavam-se num bolo na
garganta e eu já não sabia se chorava, se falava, se gritava. não fiz nada.
sabia que chegaria em casa logo, ou daqui a muitos anos, e escreveria o que via
desse jeito imenso, intenso, “caiótico”, e depois te contaria tudo, vê e diz o
que achas. a simples noção de que tu poderias entender. e quanto mais o bolo
crescia e me preenchia por dentro, mais eu sabia que não seria plágio. entendes?
não é que eu planejasse, ou pensasse, ou copiasse. não passava pela cabeça. só
jorrava, essa coisa descritiva, imensa, urgente. esperava que as caras de
paisagem não me notassem. rezava que elas não percebessem meus olhos tão
abertos, tão atentos ao tênis de couro preto do cara sentado no banco verde da
frente, eu sentada no banco laranja, de lado, que nunca me sento de costas que
fico enjoada. percebi que sentara no banco laranja e logo esperei que não me
julgassem, o vagão quase vazio, sem passageiros preferenciais. esperava que
achassem que eu era uma passageira preferencial, velha, cansada, os olhos um
tanto esbugalhados, talvez, enquanto olhava o tênis de couro preto do cara que
tinha um cadarço estranho, dum tipo que nunca tinha visto. e sorri. pois nem
via passarem as estações. e logo cheguei e saí logo do vagão verde de hospital,
rezando que não percebessem que eu não tinha mais cara de paisagem como todo
mundo. eu sei, isso é muito perigoso. poderiam querer quebrar-me os dentes se
percebessem que eu acabara de renascer, de novo. que estava assim tão
vulnerável, com menos de um dia de vida. vazia, plena, flutuando na bolha de
Caio. poderiam querer matar esta eu neonata. sei lá, porque, só tive medo. e
pedi num sussurro, por favor, hoje não. por favor, hoje não. agora que cheguei
e escrevi tudo alegro-me que me lembrei de tudo, do jorro descritivo
incontrolável. e espero que entendas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário